Coronel Luciano
“Coronel Luciano”.
Texto retirado da Revista Playboy – Abril 1994. O COLECIONADOR DE VIRGENS, COMO ERA CHAMADO, ELE DEIXOU 256 FAZENDAS, 30.000 IMÓVEIS EM BELO HORIZONTE, DEZESSETE CINEMAS, SEIS AVIÕES E 31 FILHOS, 28 DELES NASCIDOS FORA DO CASAMENTO.
ERA O “CORONEL TOTOCA”, QUE PREGOU O CONTROLE DE NATALIDADE E “DEFLOROU 2.000 MULHERES”. Um dia pilotando seu pequeno avião sobre o Vale do Urucuia, noroeste de Minas Gerais, o médico Antônio Luciano Pereira Filho, enfrentou uma pane e destruiu o aparelho num pouso forçado em área de pasto. Encantado com a beleza e a qualidade da terra, mal sentiu as dores dos poucos machucados deixados pelo acidente. “De quem é essa fazenda?”, quis saber do primeiro boiadeiro que apareceu para socorrê-lo. “É do Coronel Luciano” – informou o homem -, “sujeito muito rico lá da capital”. Outra vez, procurando imóveis para aumentar sua coleção milionária, o médico parou à frente um casinha, na periferia de Belo Horizonte, e perguntou à mulher na janela de quem era a propriedade. “É do doutor Luciano”, explicou a mulher. “Ele é dono de todas as casas deste bairro”. Numa terceira ocasião, vistoriando sua usina em Lagoa da Prata, à 200 km da capital mineira, ele encontrou um menino muito esperto entre os homens musculosos que empilhavam açúcar. “De quem é esse menino?, perguntou a um trabalhador da usina – por acaso um novato no emprego. “É um bastardinho do coronel Luciano”, respondeu o empregado em tom de cumplicidade. “Dizem que tem mais de dez filhos dele espalhados por ai” Contam-se aos monte histórias como essas um dos últimos grandes “coronéis” de Minas Gerais, falecido em 1990, aos 78 anos. O doutor Luciano foi um homem que perdeu a conta de tudo o que tinha. Jamais calculou a extensão de suas terras. Era incapaz de enumerar suas fazendas. Desconhecia quantos prédios, casas e lotes possuía em Belo Horizonte. Não tinha a menor idéia de quantos filhos fizera fora do casamento. E muito antes do fim da vida desistiu de contabilizar meninas que se deitaram virgens na sua cama para se levantar mulheres na manhã seguinte. Em todos esses aspectos, Luciano foi um homem de grandes números. Suas terras somavam 4 milhões de hectares, ou a dimensão equivalente a quatro Líbanos, divididos entre 256 fazendas. Ao longo da vida, acumulou 30.000 imóveis em Belo Horizonte – 15.000 deles edificados. Deixou ainda seis aviões, dezessete cinemas, dois hotéis, de três e quatro estrelas, uma destilaria de álcool, uma usina de açúcar e outros negócios mais modestos, esse patrimônio, que os advogados da família se recusam a enumerar ou confirmar, valia 500 milhões de dólares. São 31 filhos para partilhar a herança – dois de um único casamento, uma adotiva e 28 com a paternidade reconhecida pela Justiça, com a comprovação de exames de constituição genética. Em ordem decrescente, as idades variam entre 52 e 14 anos. Ou seja, o coronel tinha plena vitalidade até os 68 anos. Ainda há cinco pessoas movendo ações judiciais para pendurar-se num galho dessa frondosa árvore genealógica.
UMA VIRGEM POR SEMANA, 50 POR ANO, A PROLE É IMPRESSIONANTE, mas surpreendentemente pequena se for considerada a quantidade de mulheres defloradas pelo coronel: 2.000, estimam seus amigos e empregados mais antigos, em outro conta igualmente espantosa mas realista. Luciano liberou definitivamente sua tara por virgens ali pelos 35 anos, quando já estava economicamente muito bem ancorado. Numa aritmética simples teria deflorado, então, cerca de cinqüenta meninas por ano, em média – ou uma por semana. Como se utilizava de qualquer arma – da sedução ao estrupo, passando pelo aluguel de mocinhas junto aos seus próprios pais – o coronel nunca teve dificuldade para abastecer sua cama com jovens pobres e ignorantes, cortejadas, raptadas ou compradas nos vastos domínios de suas fazendas e de seus empreendimentos comerciais. Quando o assunto era uma virgem nova à disposição, Luciano não se preocupava com outros detalhes. Acabou, comprovadamente, tendo filhos com duas moças que eram irmãs e – para espanto da sociedade mineira – gerando outro filho no ventre de uma de suas próprias filhas. “O que eu gosto mesmo é de entrar numa mulher que nunca esteve com homem nenhum”, costumava explicar Luciano para os poucos amigos e muitos puxa-sacos que ouviam suas histórias e até ajudavam a encontrar presas para saciar-lhe o apetite. “Ele é um homem doente”, vivia dizendo sua mulher, Clara, que aturou as estripulias do marido até 1954, quando se separou e o deixou com mais algumas noites livres para suas atividades de predados sexual. Clara foi a mulher mais sofisticada da vida de Luciano. De boa família rica do interior mineiro, ela merecia coisa melhor que o filho médio do balconista de armazém Antônio Luciano Pereira, o “coronel Totonho”, aparentado com matadores de gente da região de São Gotardo, no oeste de Minas Gerais. Naquele tempo, o moço Luciano já deixava claro que pouco usaria o bisturi e o diploma de cirurgião. Já estava em gestação, dentro de sua personalidade, o insensível “coronel Totoca”. Desde o curso de Medicina, sua maior fonte de rendimento era emprestar dinheiro a juros para os colegas e comerciar ouro em pequenas cidades do interior, nas temporadas de férias. Também comprova santos de barro a preço baixo para vender com lucros imensos na capital. Pertencer a uma família de pistoleiro era uma situação que atrapalhava os Pereira há mais de uma geração. Durante toda a infância e juventude Luciano tinha ouvido falar de um tio sumido, que passou a vida escondido d polícia. Quando a mãe de Luciano, Olímpia, a “Sinha Lipinha”, foi pedida em casamento pelo coronel Totonho, os pais da moça travaram uma conversa que ela ouviu escondida e gostava de repetir. A mãe não queria dá-la em casamento a um noivo tão desinteressante. “É verdade que eles tem fama de matadores”, o pai concordou. “Mas esta menina é tão feia que se não casar com esse corre o risco de não encontrar outro.” Clara, que casou com Luciano, também não era nenhuma beldade, mas nessas questões de beleza do rosto das mulheres ele nunca botou muito reparo. Só era obsessivo na batalha contra a gordura – a sua, a dos familiares e a das mulheres que ia juntando na vida. Em casa, tinha uma balança no banheiro muito antes que isso virasse moda. E fazia a mulher e os dois filhos se pesaram de manhã, nus, todos os dias. Aí de quem tivesse ganhado algumas gramas. Foi por ai que Clara iniciou seus silenciosos protestos contra o comportamento do marido. Ela engordava e bebia uísque em largas doses, outro hábito que o coronel nunca tolerou. Abstêmio, mas disposto a consumir qualquer beberagem que prometesse reforço em seu desempenho sexual, Luciano so abria uma exceção alcoólica em situações especiais. Pegava então no cofre do escritório uma garrafa de Alcatrão de São João da Barra e virava um único cálice. No se empenho para manter a potência, tomou infusões das raízes mais variadas, mesmo tendo conhecimento científico da ineficácia dessas poções. Desenvolveu ainda suas próprias receitas. Nos anos 50, teve de tomar injeções grandes e doloridas para leishmaniose e cismou que elas tiveram nele efeitos afrodisíacos. Depois disso, passou o resto da vida suportando outras injeções e recomendando-as para amigos sexualmente abalados. Também foi procurar energia com andrologistas e certa vez voltou de Salvador muito animado com a medicação prescrita por um especialista. “Meus bagos estão crescendo”, espalhou, orgulhoso, entre alguns conhecidos. Aparentemente, os chás, as simpatias e os tratamentos deram certo, pois muito além dos 70 anos ele continuava interessado por mocinhas. Embora adepto da variedade, o coronel estava longe de ser atleta sexual. Prescrevia aos interessados em sua vitalidade apenas uma ejaculação por noite. “Para não gastar”, esclarecia. Também não gostava de orgias. Em diversas ocasiões levou para suas fazendas mais distantes, no Maranhão, duas ou três amantes. Mas dedicava-se a uma de cada vez. Gostava de fazer sexo diariamente e tinha uma infra-estrutura adequada a seus hábitos. Nas fazendas, onde mandou construir casa imensas mas que quase sempre esqueceu de mobiliar, mantinha sacos de dormir feito de lona verde, ventilados por uma tira estreita de tela de náilon. Eram de casal, naturalmente. Quando o coronel estava na usina de açúcar, cuja vila de colonos tinha 7.000 habitantes, a escolha da próxima virgem seguia um ritual. Não poucas vezes, os pais levavam à sede meninas de 12 e 13 anos, com seus melhores vestidos, para tentar “emprego” no armazém ou na administração. Era um torneio de hipocrisia.o coronel Luciano girava um torno da moça, examinando a anatomia, dava um dinheirinho para os pais e, aos cochichos, combinava com um capataz chamado Tião a operação para colocá-la em seu quarto, sempre por uma porta voltada para o lado externo da casa. No comecinho da noite, Tião passava de Jipe, com a capota levantada, e parava bem encostadinho na porta. De madrugada, depois que Luciano levantava para fritar seu pedaço de queijo, a moça era retirada da sede. Ninguém via nada. Todos sabiam o que acontecia. Só algumas vezes o coronel dava tom de farra a suas jornadas de sexo. Numa delas paralisou a armazenagem de açúcar no meio da tarde para levar uma menina novinha até o alto da pilha de sacos. Enquanto isso, os administradores vigiavam a porta do barracão e os carregadores agüentavam sob o sol sacos de 50 quilos, esperando o coronel desocupar o lugar. Para outra garota, Luciano pagou uma cirurgia plástica para diminuir o volume dos seios. O resultado agradou-o tanto que ele freqüentemente pedia a amante que levantasse a blusa e mostrasse os peitos para as visitas, enquanto elogiava a operação. Quando estava em Belo Horizonte, o coronel usufruía de outros confortos. Seu escritório no Hotel Financial, uma de suas propriedades no centro da cidade, tinha porta direta para uma suíte privativa. Entre os empregados, aquele lugar era chamado de “açougue”. Luciano caçava virgens entre empregadas e candidatas a emprego. Não fazia rodeios. Gostava, mandava chamar, ordenava que entrasse no “açougue” e abatia. Quando havia reação, partia para o espancamento e o estrupo. Mais de uma vez, saiu rasgado e lanhado desses confrontos. No pior deles, enfrentou uma moça de 19 anos. Estava decidido a surrá-la deste que soube que era virgem, embora tão bonita e jeitosa. Ele achava um acinte que nenhum homem ainda se tivesse servido de prato tão apetitoso. Deflorou-a, mas por bom tempo carregou manchas roxas e arranhões pelo corpo, como medalhas conquistadas numa batalha. Ele era simpático, tinhas olhos esverdeado, mas sofria por ser baixinho e morria de medo da velhice.
“SE CHEGAR PERTO DELA, EU MATO” Como parte de suas vítimas, Luciano praticava as generosidades típicas do coronelismo, mesmo no cenário urbano. Uma vez uma amante, a menina podia morar de graça numa das milhares de casas que ele possuía. Também tinha emprego garantido em suas empresas e, nos casos mais especiais, nem precisava trabalhar para receber o salário. Um antigo desafeto político do coronel Totoca lembra uma história sobre o poder de seu dinheiro. Esse sujeito morava no mesmo prédio que uma enfermeira muito pobre, mãe de uma mocinha belíssima que acabou indo trabalhar no Banco Financial da Produção, de Luciano, “Se ele chegar perto da minha menina, eu mato ele”, vivia ameaçando a enfermeira, bem informada das histórias que corriam sobre a avidez do estuprador. Repetiu a ameaça por muitos meses – até que um caminhão parou à porta do prédio para trocar os móveis da casa. A enfermeira nunca mais abriu a boca – alias enfeitada por um cintilante dentadura nova – para dizer que matava quem quer que fosse. Ao contrário. Para o coronel, amante de sua filha, só tinha elogios. Com o tempo, muitas meninas como a filha da enfermeira desapareciam de Belo Horizonte. Outras engravidavam e ganhavam do coronel um aborto com a parteira Henriqueta. Umas poucas, não se sabe por que, talvez as prediletas, chegavam a dar à luz. Essas, estigmatizadas numa sociedade extremamente conservadora, ficariam nas casa de Luciano o quanto quisessem e os filhos se dessem sorte, poderiam gravitar em torno do pai, em pequenos e mal remunerados empregos, quando alcançassem a idade de trabalhar. Vez ou outra, as repercussões dos métodos violentos do coronel materializavam-se em boletins de ocorrências. Politicamente bem relacionados e sempre disposto a comprar silencio, além de virginidades, ele não se atrapalhava com esse tipo de problema. Em dezembro de 1954, os pais de uma menina de 14 anos estrupada pelo coronel procuraram a policia para abrir inquérito processo que ele deu 7.000 cruzeiros (cerca de 100 dólares, na época, equivalentes à três salários mínimos) para eles, diante do delegado, garantindo assim o arquivamento da queixa. Nada disso resultou em alguma complicação mais séria para Luciano, assim como também deu em nada a denúncia de que ele estrupou trinta meninas entre 13 e 15 anos durante dois meses de 1980, em instalações de sua imobiliária Fayal e numa garçonnière do bairro Planalto, em Belo Horizonte. Data de 1947 a primeira noticia envolvendo o coronel num caso de estrupo. Nessa época, ele era um novo rico que adorava circular num Cadillac do ano. Depois perdeu o gosto pela ostentação. Trocou o cadillac por um Gordini amassado e, mais tarde, por um Dodginho Polora amarelo, em péssimo estado. Nunca abandonou o gosto de pilotar aviões, mas, distraído, vivia metido em acidentes – um deles porque trocou as mangueiras dos tanques esquerdo e direito do aparelho e foi surpreendido por inexplicável falta de combustível em pleno vôo. Em 1952, o Jornal do Povo, ligado ao Partido Comunista, fez uma reportagem detalhada sobre os hábitos criminosos de Luciano, e isso só serviu para que ele experimentasse o poder da fortuna que construía. Informado da publicação a seu respeito, Totoca distribuiu maços de dinheiro entre meia dúzia de capangas e mandou-os percorrer todas as bancas de jornal da cidade, ainda de madrugada. Praticamente toda a edição do Jornal foi comprada pelo coronel – e devidamente queimada. Dono dos maiores cinemas de Belo Horizonte, e portanto um grande anunciante dos Jornais de maior circulação, poucas vezes deu mostras de se importar com o que publicações mais independes diziam dele. No final do anos 50, um de seus capangas encontrou-se no bar Pólo Norte com um grupo de jornalistas do semanário Binômio, um dos pioneiros da empresa alternativa em Minas, que tinha em Luciano uma fonte freqüente de manchetes. O homem deu para distribuir ameaças em nome do patrão e acabou espancado pela turma de repórteres e redatores. Luciano não reagiu.
FIO DENTAL E TOUCA DE MEIA NA CABEÇA. Sinistro era esse adjetivo que os inimigos mais gostavam de acoplar ao seu nome. Os amigos chamavam-no de coronel pelas costas e, pessoalmente de doutor, como ele gostava. Milionário, não freqüentava a sociedade mineira e muito raramente comparecia a uma pré-estréia em seus cinemas. Numa dessas ocasiões, deixou-se fotografar ao lado da atriz e bailarina cubana Ninón Sevilla, que esteve em Belo Horizonte no final dos anos 40. Flagrado no auge de sua forma física, Totoca revela-se nessa foto até simpático, com seus olhos esverdeados, mas não a ponto de contracenar com a mulher a seu lado, na época conhecida como a rainha da rumba. Com apenas, 1,57 metro de altura, ele resolvia um martirizante complexo equilibrando-se sobre sapatos com salto plataforma. Hipocondríaco, morria de medo de brucelose (por isso fritava o queijo), de barbeiros (daí o saco de dormir nas fazendas), de ficar careca (o que levava a dormir com toucas de meia de náilon), de perder os dentes (carregando fio dental no bolso do paletó e usando os cordõezinhos em qualquer lugar e ocasião), de ter insônia (então tomava calmantes para dormir) e de parecer disperso (razão pela qual tomava estimulante diariamente). Eduardo Almeida Reis, que trabalhou como administrador de fazenda para o coronel e hoje vive em Juiz de Fora como Jornalista, recorda que os estimulantes eram uma fixação. “Ele chegava a distribuir o remédio para sua turma de capatazes e até para as visitas”, recorda Reis. “Muitas vezes fiquei ligadão.” O maior de todos os medos de Luciano era a velhice e a conseqüente perda da potência sexual. Além das poções, recorria amiúde a operações plásticas, para tirar um ruga, cortar uma papada, levantar o canto dos lábios, tirar bolsas sob os olhos, desentortar a fisionomia. Fez mais de vinte, a partir do 40 anos. Numa das primeiras, tirou também a marca de um tiro que levou no rosto no começo dos anos 50, quando o irmão de uma moça decidiu lavar com sangue a honra ferida da família. Anos mais tarde, também o jovem marido de uma mulher de Lagoa da Prata teve essa idéia. Esperou-o à porta da sede da fazenda e só não acabou ali com a carreira do conquistador porque um dos capatazes colocou a mão na frente do cão do revolver. Em vez de acertar a espoleta da bala, a agulha acabou furando a mão do empregado metido a herói. O coronel adquiriu um pavor tão grande de armas de fogo que noutra ocasião teve de tomar água com açúcar ao visitar um compadre e ser alvejado de brincadeira por um menino com um tiro de pólvora seca. Luciano jamais andou armado, embora tivesse seguranças que nunca tentaram esconder os revólveres enfiados entre o cinto e a barriga. Franzino, o coronel Totoca dava conta de bater um mulher mas não se metia em disputas no braço. Preferia a violência do poder e, quando necessário, de aluguel. Quando ia para as fazendas, recheava os bolsos com maços de notas graúdas e, parado no alpendre da casa grande, distribuía cédulas de cabeça baixa, sem dizer palavra. No meio dos colonos amontoados em volta, também seus engenheiros e administradores acabavam embolsando a caixinha. Regateava, às vezes, nessa “generosidade”, para valorizar as contribuições. De manhã, gostava de caminha na varanda, de cueca samba-canção, camisa e meias, descascando laranja e distribuindo ordens a seu pessoal. Uma ocasião, apareceu uma mulher pedindo um particular, “Não dá para pagar a conta da farmácia”, ela explicou. “Vá para a puta que a pariu, dona”, o coronel respondeu. “Não tenho nem para as minhas contas. Como vou pagar dos outros?”. Luciano continuou seu vaivém no alpendre, de cara amarrada, mas a mulher não foi embora, esperando outra solução. Meia hora depois, ele mandou um empregado cobrir a despesas dela na farmácia. Muitos tos terrenos e das fazendas que Luciano amealhou, até possuir quase todo entorno de Belo Horizonte, foram tomados com sua atividade de banqueiro ou com grilagem pura e simples. Tomadores de empréstimos no Banco Financial sempre tinham crédito até o limite do que podia empenhar como garantia. Depois disso, o coronel executava a dívida sem qualquer negociação. Quando descobria terra com registros irregulares ou inexistentes, ele simplesmente mandava os capangas cercá-las e expulsarem quem ficasse do lado de dentro. Tempo depois, a imobiliária Fayal vendia os lotes como se as terras fossem dele desde sempre. “Desde o tempo em que era agiota, ele sempre pareceu acreditar que o que fazia era moralmente correto”, recorda um amigo de Luciano “Totoca achava que ganhar dinheiro era quase obrigação que ele tinha de cumprir na terra.”
UM BANCO DO AGIOTA COMEÇOU NO PORÃO, essa obrigação ele cumpriu tão à risca quanto a de deflorador. Os pequenos empréstimos que fazia no tempo da faculdade logo se tornaram tão volumosos que o jovem Luciano teve de abrir um escritório no porão da casa dos pais, em Belo Horizonte. Estabeleceu assim, uma casa bancária que logo teria mais de 300 agências espalhadas pelo interior de Minas Gerais. “Não preciso de contabilista”, repetia Luciano, quando emissários do governo insistiam em ver os registros de seus negócios. “O que conta no banco é a entrada e saída, e isso quem controla sou eu mesmo. Como está entrando mais dinheiro do que saindo, ninguém tem nada com que se preocupar.” Havia, sim, muito para preocupar governo e depositantes. Tanto que o Banco Financial da Produção acabou fechado em 1954, instalando na praça um dos maiores calotes de que se tem notícia em Minas Gerais. Mas a quem os lesados poderiam reclamar, se o coronel era amigo íntimo do governador Juscelino Kubitschek e emprestava o Hotel Financial para sediar tanto farras e reuniões de delegados de polícia como encontros do poderoso PSD mineiro? O ex-governador Benedito Valadares, líder do PSD, tinha escritório permanente e de graça no hotel do coronel.
O intenso relacionamento de Luciano com os poderosos provocou um dos mais notórios casos de puxa-saquismo da política mineira. Uma das práticas mais freqüentes de Luciano era atrasar pagamento de impostos, cuja multa era de 1%. Usa o dinheiro da sonegação para empréstimos no seu banco, cobrando juros de pelo menos 4%. Muito íntimo do deputado Ovídio de Abreu, ele colecionou favores quando o amigo foi secretário da Fazenda de Minas, entre 1934 e 1941. Em retribuição, rebatizou a usina de açúcar de Lagoa da Prata, com o nome do benfeitor e, em várias eleições, carreou para seu protetor todos os votos do colonos da propriedade.
A usina e os 30.000 hectares de canavial a sua volta espalham-se por seis municípios e valem perto de 120 milhões de dólares. Era a menina dos olhos do coronel. A vila Luciânia, assim batizada numa auto-homenagem, tem estação de trem (Parada Luciânia) e chegou a possuir até moeda própria, o “Boró”, que o governo tirou de circulação em meados do anos 70. O boró tinha a marca típica da escravidão. Os trabalhadores recebiam o salário nessa moeda, que só circulava na fazenda, mas podiam trocá-la para gastar onde quisessem – deixando 30% do valor na caixa das empresas, pela corretagem.
Nos anos 60, o próprio Luciano foi candidato a deputado federal e deu mostra da sua fidelidade a Ovídio de Abreu. Comprou seus votos em outras localidades, mantendo os da colônia para o amigo. Depois do golpe militar quando o regime procurava alguns corruptos para cassar e legitimar-se, Luciano foi uma presa fácil. Afinal, chegou à Câmara utilizando dois velhos expedientes do sertão: distribuiu notas rasgadas ao meio e um pé de botina para os possíveis eleitores, e só depois da contagem dos votos entregou a cada um o complemento dos presentes. Nas poucas vezes em que esteve no plenário da câmara, Luciano deixou um projeto que depois daria origem ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – vejam só – o controle de natalidade. Na época da campanha, chegou a jogar, de avião, sobre várias cidades, papeletas ensinando o método da tabelinha. “É necessário mais honestidade e menos filhos”, ensinava o texto. “Os que procedem assim estarão colaborando para o bem de todos.” Seguramente, essa era só uma preocupação eleitoral de Luciano.
Era típico que vive indo do trabalho para casa, e vice-versa, com a diferença de ter até dez casas para escolher. Trabalhava muito, em expedientes de até catorze horas diárias, e só não enriqueceu ainda mais porque se amargou a um método que limitava os negócios: só ele assinava papéis, tudo tinha que passar por suas decisões. Quando a impossibilidade física de controlar tudo começou a prejudicar seus negócios, ali pelos anos 60, ele desenvolveu outro tipo de gerenciamento. Num administração de portas abertas, recebia qualquer funcionário em seu gabinete e premiava com dinheiro vivo quem fosse fazer fofocas sobre gazetas ou ladroagens de colegas de trabalho.
Chamado pelo filhos extra matrimoniais de “padrinho” e curiosamente interessado em ter sempre alguns deles a sua volta, Luciano acreditou que essa era uma boa ocupação para os meninos. Contratava-os em suas empresas, com pequenos salários, e não exigia que trabalhassem em nada especificamente, só precisavam circular entre os colegas, ouvindo e vendo em nome do pai. Pelo quatro toparam essa função,mas um deles Lhano Nélson, era mais ambicioso, Lhano aceitava o trabalho de espião, mas queria um cargo compatível, com a responsabilidade. Nunca arrancou isso do pai e o melhor que conseguiu foi vender pipoca nos cinemas de Totoca. Desse pequeno empurrão, salto como um legítimo herdeiro do coronel para a construção de uma pequena fortuna. Hoje (1994) com 37 anos, tem cinco motéis, duas dezenas de casa de diversões eletrônicas e quase um edifício inteiro na principal avenida de Belo Horizonte. Foi o temperamento do rapaz que também colocou areia nos planos do coronel para deserdas os filhos ilegítimos, além de atrapalhar, depois de sua morte, uma obra de engenharia para a partilha da fortuna.
FALTA DINHEIRO PARA PAGAR O IPTU, há dez anos, com o coronel ainda vivo, Lhano entrou na justiça, com uma cão de reconhecimento de paternidade. Por birra e desinformação, o coronel tirou sangue para um exame de características genéticas e terminou surpreendido pela precisão dos testes com DNA. Seguiu-se uma enxurrada de processos semelhantes, a tal ponto caudalosa que, quando Luciano morreu, o advogado Gustavo Capanema de Almeida recebeu sob custódia uma imensa amostra de seu sangue, para garantir a realização de dezenas de exames requisitados pela justiça. Quando um tumor no cérebro lhe tirou a vida,Totoca acreditava ter ludibriado todos os bastardos pretendentes à herança. Antes da morte e do enterro sem velório no Cemitério do Bonfim, diante de apenas sessenta pessoais, tinha transferido tudo que tinha para empresas em regime de sociedade anônima, nas quais só os dois filhos legítimos e a adotiva tinham participação. Não teria, portando, segundo imaginava, nenhum bem a inventariar. Só que Lhano, àquela altura, já tentava demonstrar legalmente a fraude contra os interesses seus e dos irmãos, o que levou os três filhos assumidos a propor um acordo com a turma toda. Ficaram com metade dos bens, que representaria a parte de Clara Henrique Pereira no espólio, e racharam o restante em cerca de quarenta cotas. Uma para cada um deles, outras para os meio-irmãos e as que sobrassem para um fundo de reserva destinado a atender outros eventuais herdeiros. Esse acerto jurídico envolveu quatro desembargadores aposentados, entre eles o advogado Gustavo Capanema de Almeida.
Teria dado tudo certo se Lhano tivesse assinado a papelada. Mas ele exige o direito de conhecer todos os bens e os critérios de avaliação e teima em fazer as contagens retroagirem ao período anterior às transferências para as empresas de sociedade anônima. Em tese, se vencer essa disputa jurídica, ele conseguirá impugnar todas as vendas de bens de Luciano anteriores à divisão entre os herdeiros, aumentando a bolada. “Tenho um patrimônio pessoal até maior do que teria direito na herança”, diz Lhano, que cursou Direito apenas para enfrentar essa disputa. “Mas estou brigando por uma questão de princípios e para evitar que todos os meus irmãos sejam enganados”. Mesmo com toda a legião de interessados, o empresário meteu-se numa batalha solitária. Explica-se: Filhos de mães humildes, nunca aquinhoados nem por migalhas da fortuna do pai, seus irmãos preferiram um pássaro na mão e assinaram correndo o acordo de divisão de bens. Receberam cada um o equivalente a 8 milhões de dólares, em imóveis e empreendimentos comerciais, e entraram firme na gastança ou na tentativa de virar executivos. Arredios a comentários sobre qualquer aspecto de suas vidas, tanto quanto a família oficial e os advogados do espólio, eles integram um confraria de empreendedores despreparados e com problemas. Seis meses depois do acerto, não se conhece nenhum que tenha colhido lucros significativos de seu quinhão. Pelo contrário, sobram boatos de que na maioria não tinha nem idéia de onde encontrar dinheiro para pagar, por exemplo, o IPTU dos milhares de imóveis distribuídos.
“Se a minha vida melhorar, estraga”, diz Lucélio Luciano Ladeira Rosa, de 30 aos um dos poucos filhos de Luciano dispostos a falar de sua nova vida. Sua parte no pacote foi uma imobiliária com casas alugadas, cujo número ele não revela mas que equivalem a uma pilha de carnês de IPTU de 20 centímetros de altura. O otimismo da fala não condiz sequer com o ambiente: um estreito, abafado e desorganizado escritório numa rua central de Belo Horizonte, com piso de tábuas sujas e velhas, flagrante falta de cadeiras e nenhum indício de prosperidade no ar.
SOBRE OS HERDEIROS A SOMBRA DO CORONEL, uma das filhas de Luciano herdou 180 lotes e descobriu que terá que vender um por mês, para sobreviver e pagar os custos de administração. Isso a levará a falir em quinze anos, na melhor das hipóteses. Outro, menor de idade, percebeu que mãe e padastro podem arruiná-lo e pediu a interdição dos bens a um juiz. Uma terceira precisou de uma demoradíssima aula de geometria para entender o que é metro quadrado. Na distribuição do bolo, Glausi Soraya Rodrigues, hoje com 36 anos, leva duas fatias. Filha de Luciano, ela teve com ele um menino, Antônio. Foi um incesto de 8 milhões de dólares.
“Passarinho tem filhos com suas filhas porque a figura do pai não existe”, justificou-se o coronel Luciano (Totoca) na única vez que comentou a história publicamente, falando ao repórter Antônio Carlos Scartezini, da revista VEJA.
Quando vivia à volta do padrinho Luciano, Lucélio aprendeu que ele gostava de controlar e limitar a vida dos filhos. Lembra com amargura que prestou exame para ser investigador, foi aprovado e acabou impedido de cursar a Academia de Polícia porque o coronel telefonou ao Secretário de Segurança e pediu para vetarem seu nome. Noutra oportunidade, foi convidado para ser caixa de banco em Vitória, e de novo o pai entrou em cena para bloquear o seu sonho. Quatro anos depois da morte do velho coronel, esta sina de patinar em volta da figura paterna ainda parece amaldiçoar a maioria dos herdeiros. A herança de Luciano, embora imensa, não é simples, dourada e fácil de fazer crescer como eles imaginaram quando sonhavam na miséria.
Ao contrário, pelos problemas que trouxe para cada um deles, ela parece impregnada da perversidade que ele tinha no sangue. Não é apenas o DNA do coronel Totoca que carregarão nas veias pelo resto da vida.
Texto retirado da Revista Playboy – Abril 1994 .
Que história triste de tirar o fôlego. fui lendo e vendo um filme baseado em histórias que ja conhecia parcilamente de pessoas que viveram tudo na pele. Muito provavelmente tem muito mais terror de onde saiu estes . Quem viver verá .